Meu
nome é Paulo Eduardo Ramos, tenho trinta e três anos de idade, muita memória e
pouco cabelo. A história que segue teve início no já distante ano de 1985,
porém, ainda lembro quando, surpreendido, por um convite materno, aceitei
visitar minha irmã. Fiquei surpreso, pois não sabia onde ela estava nem o que
fazia toda manhã, quando, ainda cedinho, deixava a nossa casa. Entretanto,
confiava no que minha mãe dizia e isso, às vezes me bastava. _ “Tua irmã foi
pro colégio estudar”. Naquela
manhã a felicidade foi grande, pois, enfim, iria desvendar um grande mistério.
Sempre demonstrei preocupação com as coisas e principalmente com as pessoas.
Minha irmã era acima de tudo a minha melhor amiga. Era com ela que eu passava a
maior parte do tempo, portanto, era natural que eu me preocupasse a ponto de
querer saber o que ela fazia longe de casa. Então,
agarrado por uma das mãos, fui conduzido até um prédio muito estranho que, por
incrível que pareça, não ficava tão longe da minha casa. Lembro que nem fiquei
cansado, isso era um bom sinal, pois quando se é criança as distâncias são
medidas pelo cansaço da caminhada. Para mim aquela era uma casa imensa. Logo ao
chegar perguntei para minha mãe se ali morava uma família muito grande. Ela me
respondeu, ainda fechando o guarda-chuva, que aquele era um local onde as
pessoas iam aprender a ler e a escrever ou como ela mesma concluiu: _”Um lugar
onde todo mundo vem pra ser alguém na vida”. “Ser
alguém na vida”. Confesso que essas
palavras me atormentaram por um bom tempo, ainda hoje me pergunto sobre o seu
real significado. Mas, naquele momento, nada poderia ter me causado maior
espanto do que o susto que levei ao escutar uma sineta tocar. Uma mulher gorda,
com um sino na mão, percorreu os corredores alardeando algo. Descobri, mais
tarde, por intermédio de minha mãe, que se tratava de um sinal para que os alunos
viessem comer a merenda dada pela escola. Pronto,
o lugar havia me conquistado. E olha que eu me deixei conquistar por um prato
de comida que nem provei. Porém, toda vez que entro em um colégio, ainda, sou
capaz de sentir o mesmo cheiro e vislumbrar as mesmas cenas. É impossível, para
mim, não ter tais lembranças: o aroma que vinha da cantina, as mãos e a manga
do casaco levemente molhados pela garoa, minha mãe toda apressada (tinha que
voltar pra casa e fazer almoço), a merendeira gorda com o sino na mão, as
crianças correndo num barulho frenético... Enfim,
aqueles minutos me bastaram para desejar freqüentar aquele local pro resto da
minha vida. Entretanto, teria que esperar até o próximo ano. Naquele momento,
ainda não tinha a idade exigida. Minha Irmã, três anos mais velha, estava ali e
insisti em vê-la. Qual foi minha surpresa ao entrar em uma sala toda decorada
com letras gigantes e desenhos espalhados por todo o local? Fiquei eufórico! Convenci
mãe e professora a me deixar ficar. Permaneci ao lado de minha irmã e com ela
pintei e rabisquei alguns livros ilustrados. Brinquei e sorri como se aluno
fosse. Essa
é a memória que tenho ao entrar em um colégio pela primeira vez em minha vida.
Não se trata do primeiro dia de aula, pois o que guardo com carinho é
exatamente o que descrevi acima. Se a primeira lembrança é a que fica, confesso
que o ditado nunca esteve tão certo, ao menos para mim. Pois, nenhuma outra
lembrança escolar é mais valiosa do que essa. Como
disse anteriormente, não posso me referir ao primeiro dia de aula como me
refiro às lembranças que guardei ao visitar minha irmã naquele colégio. Não
posso fazer isso, pois quando entrei na primeira “série” as coisas não
aconteceram como sonhava ou como imaginava que seria. Meu primeiro dia de aula,
no Colégio Cenecista de 1° e 2° Grau Sepé Tiarajú, foi assustador. Chorei e
pedi pra ir embora, mas logo fui persuadido, pelo diretor, a continuar. Permaneci
sentado, com um choro preso na garganta, um nó que só aumentava toda vez que um
coleguinha me olhava com olhos de desprezo ou de espanto. Ainda, hoje, não sei
descrever. De
qualquer forma, não tive um bom começo em minha vida estudantil. Incrivelmente,
fui aprender a ler apenas na terceira “série”. Já me perguntaram como isso pôde
acontecer. Acho que tive muita sorte, pois a professora foi a mesma durante os
três primeiros anos letivos e o seu método também. Ela não costumava tomar
nossa leitura e quando fazia era sempre da mesma forma, ou seja: em voz alta,
cada aluno lia uma pequena parte do texto que era passado no quadro. Como
eu já estava acostumado com aquilo nunca sentava nas fileiras do canto ou no
início delas. Posicionava-me, estrategicamente, sempre no centro da turma, pois
quando chegava a minha vez de ler, eu, já havia decorado todo o texto. E do
ponto onde o colega (anterior a mim) havia parado, eu continuava. Nunca esqueci
uma linha se quer. Isto poderia ter me causado graves problemas, mas nunca
causou. A verdade é que exercitei tanto meu poder de concentração que, hoje,
jamais esqueço o que me falam. Sempre que escuto algo com atenção é como se
tivesse anotado em um papel. Acesso meu “arquivo cerebral” e lá está o que
desejo: conversas, imagens, etc. É
verdade que nem tudo são flores, ainda guardo algumas deficiências que credito
a má formação inicial. As coisas melhoraram apenas na quinta “série”, depois de
repeti-la por duas vezes, é claro. Gostaria muito de seguir dizendo que fui um
excelente aluno, mas na verdade nunca me interessei, até então, por
absolutamente nada. Minha preocupação não era a escola e sim o que acontecia em
casa com minha mãe e irmã. Pessoas com quem compartilhei inúmeras aflições. Falo
isso, porque meu pai não foi um exemplo de bom marido ou de pai adorado. Quase
não o via em casa e quando isso acontecia dificilmente passávamos sem que
acontecesse algo desagradável. Infelizmente, o convívio com estranhos e com a
polícia, batendo a nossa porta, era mais comum do que com os poucos amigos que
tinha. As relações escolares não poderiam ser outras, senão baixo desempenho e
excesso de faltas. O tempo passou até que me desse conta de que
eu precisava mudar e não repetir o que via tão costumeiramente nas ruas ou nos
locais que frequentava. No ano de 1992 consegui enfim sair da quinta série. Foi
um alívio, pois pensava muito em desistir da sala de aula, talvez, ir trabalhar
ou então, roubar. Confesso que a última opção me parecia mais atraente. Pois
aos poucos me tornava tão ou mais bruto que meu pai. Felizmente, nem os “amigos do crime” nem as
drogas que, a todo instante, se apresentavam me convenceram de que aquele era o
melhor caminho. Trabalhei
ao mesmo tempo em que completei o ensino fundamental. Quando, enfim, cheguei ao
ensino médio, pude perceber que poderia fazer algo diferente de todas as
pessoas que conhecia. Poderia ter um futuro promissor, desde que eu fizesse as
coisas acontecerem. Completei o ensino médio e com ele o curso técnico em
contabilidade. Parecia estar decidido no que fazer da minha vida, assim que
deixasse o colégio. Entretanto,
optei pelo curso de Direito. A idéia de confrontar um criminoso no tribunal ou
de livrar alguém de uma condenação certa passou a falar mais alto. Direito
Penal. Falei, respirei e comentei com todos sobre meu desejo. O ano era 1999. A
prova do vestibular foi feita e o desejo realizado. Satisfação garantida ao ver
que os dois meses de estudo (com livros emprestados) sobre o balcão de um
pequeno armazém não foram em vão. Fui aprovado. Antes
de falar, sobre a breve tentativa de me tornar um advogado, preciso comentar
sobre as boas coisas e os bons amigos que encontrei durante o “segundo grau”,
ou como ele é chamado hoje: Ensino Médio. Nossa vida é feita daquilo que
plantamos pelo caminho e uma dessas coisas certamente é a amizade. A boa e
velha amizade, com todos seus encantos e lembranças. Algo “que não se apaga com
o tempo, tão pouco, transforma-se em filhos que dizem adeus”; como diria o
poeta. Fiz
bons amigos. Com muitos compartilhei histórias e aventuras por toda a cidade de
Santo Ângelo, interior do Rio Grande do Sul, onde nasci e vivi até os meus
vinte anos de idade. Adelar
Bieger, Edson Antunes, Rafael Lottermann, Alcione Webrath, Rafael Matte, enfim.
De
todos tenho lembranças, sendo que os dois primeiros tiveram maior importância
antes de me tornar um adolescente. Os demais fizeram parte de um convívio
escolar, e, porque não dizer, das primeiras festas, das primeiras noites em que
vagávamos pela cidade dentro de uma Wariant
velha com bancos rasgados, sem rádio e com problemas mecânicos. Pra
quem não lembra, Wariant era um carro
muito parecido com a Brasília. Lembro que toda vez que saíamos levávamos um
aparelho de som junto. O problema é que a gurizada ou reunia dinheiro pra
comprar bêbida ou reunia dinheiro para comprar pilhas. Só assim era possível
alimentar aquele monstro gigantesco que ocupava quase todo o interior da parte
traseira da Wariant. Este carro foi
responsável por momentos hilários que jamais se apagarão da minha memória. Creio
que da memória deles também não. Esses amigos foram importantes, pois, com eles,
esquecia da realidade e me tornava um adolescente de verdade. Foram
os amigos, Alcione Webrath e Rafael Matte, que me influenciaram a desejar o
ensino superior. Na época todos só falavam em vestibular e no curso que fariam
caso fossem aprovados. Eu não falava nada. Pois, diferentemente dos outros, não
tinha a mínima condição de continuar estudando ou de pagar um cursinho. Até que
um belo dia, ao passar em frente a faculdade de Direito IESA, as palavras dos
meus amigos vieram à tona. Então, resolvi arriscar mesmo sem saber ao certo se
poderia comparecer no dia do tal vestibular. Como
já foi dito, o dia da prova chegou e com ele a certeza de que o esforço feito
seria recompensado. Estava certo. Fui aprovado, mas a realidade financeira não
permitiu que eu estudasse. Meus sonhos seriam adiados ou cancelados, dependendo
do que acontecesse nos próximos dias. Eu estava com dezenove anos e não havia
como continuar morando com meu pai. Precisava sair de casa, já que ele me
cobrava isso. Aos
vinte anos de idade, sabendo das condições em que me encontrava, recebi e
aceitei o convite do meu padrasto e da minha mãe (que a essa altura já morava
em Canoas há seis anos) para morar com eles. Minha irmã havia casado, portanto,
haveria lugar para mim. Ao chegar à nova cidade trabalhei durante dois anos sem
ao menos pensar em estudar novamente. Foi somente no ano de 2001 que, por um motivo
peculiar, resolvi me aventurar no vestibular da Unisinos. Antes de tudo, preciso
dizer que já havia desistido do curso de Direito. Por algum motivo aquilo lembrava
um tempo que eu queria esquecer. Eu estava em outra cidade, vivendo uma nova
experiência. Achei que seria melhor deixar, absolutamente, tudo para trás. E
isso também era válido para os velhos planos. O
curso de História surgiu ao acaso, então, pensei: “sempre gostei de história,
no colégio tirava boas notas, e a idéia de ser professor não é tão ruim assim;
vou fazer”! Entretanto, a escolha pelo vestibular escondia uma verdade
absoluta. Meu trabalho era braçal, algo muito cansativo (trabalhava em uma
empresa de GLP, gás de cozinha), não havia lugar em meu corpo que a dor não
estava presente. Fiz a inscrição para faltar ao trabalho e com isso ter um
descanso. Isso
mesmo! Foi um motivo para faltar ao trabalho. O vestibular foi uma boa
justificativa, naquele início de semana, melhor até do que a doação de sangue.
Contudo, hoje, acredito ter feito uma boa escolha. A idéia de ser chamado de
professor, de estar presente no ambiente escolar interagindo com alunos, pais e
colegas de profissão me contagiaram completamente. A Unisinos e o curso de
História entraram em minha vida por intermédio do destino. Naquele momento não
sabia o que fazer. Nem ao menos sabia se faria algo ou alguma coisa em
beneficio da minha vida profissional. Quando, enfim, percebi, já estava
fazendo. Foram
muitos os amigos que fiz no curso superior. A lista é grande, teve início em
2001. No entanto, acredito que seja o único, daquela velha turma, que ainda
permanece na Universidade. Todos os demais já estão formados. Alguns trabalham
como professores, outros não. Gostaria de ter me formado e já estar dando aula,
mas alguns problemas antigos insistiram em me perseguir, mesmo em outra cidade.
O principal de todos foi o financeiro. Outra vez o financeiro. Há muito tempo
atrás eu havia jurado que isso não seria mais problema e mesmo com todas as
dificuldades que se apresentaram no decorrer dessa jornada, hoje, estou prestes
a concluir o que comecei. Investi
tempo, dinheiro, mais dinheiro e dois carros que adquiri ao longo desse
percurso. Tudo pra ser um professor. Uma profissão tão digna, porém, como se
sabe, pouco valorizada por nossas autoridades. Mesmo assim, tenho orgulho em
dizer que serei um professor e espero fazer o que, muitas vezes, esperei que
fizessem por mim. Pois, acredito que lecionar não é apenas repetir o que os
livros nos apresentam. Acredito que o professor, por excelência, é um ser capaz
de interagir profundamente com meio no qual está inserido. Espero fazer a
diferença para alguém. Espero ensinar e auxiliar meus futuros alunos, naquilo
que for necessário, para que se tornem pessoas de bem e porque não dizer: que
eles também possam guardar e transmitir, para quem quer que seja, as boas
memórias do tempo de escola, inclusive desse professor.
Paulo E. Ramos.